segunda-feira, 8 de janeiro de 2024

Impensamental em tese

 

Ele tirassem com uma alfinete-de-alma

todos os quandos do tempo


A língua tem consigo incorporada a racionalidade, e com isso está sujeita a leis universais e a exceções demarcadas. A natureza normativa da língua, vocacionada para comunicar o apreensível é, aqui, a substância para o exercício da indisciplina e o ponto de partida para compor a estética impensamental. Encontramo-nos pois, num discurso hiper-subjectivo, lugar onde é necessário ultrapassar tudo o que é redutor na língua e no pensamento e ampliá-los para além das excentricidades mais ousadas. Com efeito, a indisciplina e a insolência em todo o seu potencial, são apenas o mecanismo para experienciar uma mensagem-outra que reside algures na fronteira entre o apreensível e o absurdo indizível. O limite está no ponto antes do texto colapsar para uma língua alienígena, para um mero exercício niilista, ou para a veleidade do nonsense. Estabelece-se assim uma faixa de possibilidades onde não se tem de obedecer ao tempo nem ao espaço, não se tem de obedecer ao singular nem ao plural, ao masculino e ao feminino. Cria-se um lugar onde as palavras não têm de se vestir com o seu terno domingueiro da ortografia, onde um verbo se pode travestir de adjetivo, e um nome se pode encobrir numa proposição. É um lugar onde a pontuação não tem de ser repressiva, onde coexiste o arcaico e o moderno, o erudito e o boçal, a poesia e a verborreia, a matemática e a intuição, o vulgar e o técnico extraordinário... O impensamental é anárquico, na medida em que liberta a língua do espartilho de quase todas as leis gramaticais, como uma desconstrução derridiana, sujeita a múltiplos contextos, géneros, leituras e percepções, cuja funcionalidade depende da responsabilidade criativa e da experiência individual de quem escreve e de quem lê. Este espírito de co-autoria exige do leitor uma certa literacia num campo muito além da dúvida metódica, pois trata-se da indiscernabilidade ou da capacidade de obter um sentido indefinível, por vezes extensamente vago e subjetivo, quase impensável, que habita nas profundezas do seu universo individual. O código situa-se algures no estado anárquico que, para o leitor, corresponde a um estado mental da percepção de si, sem o formato da interpretação racional do texto. Será contudo uma experiência de permanente confrontação pois a emergência do novo desestabiliza os processos de decifração adquirida, que tentam reprimir o insólito como uma ocorrência que se insurge contra a ordem lógica do discernimento. Qualquer esforço em compreender um texto impensamental na mesma linha de interpretação de um texto comum, resultam invariavelmente num único sentimento: a frustração de não entender nada. Este não é, obviamente, o objetivo. Mas dada a impossibilidade dum texto não comunicar nada, é mais seguro, para começar, fazer um esforço de não-compreensão pois, face à onipresença das leis gramaticais no pensamento, o jogo interpretativo das incompatibilidades constrói, já por si, a primeira experiência artística. A infração às normas, que faz do texto um objeto permanentemente tensivo e inquietante, será, porventura, o ponto de partida para a fruição impensamental. Portanto, só com uma leitura descontraída, semi-desafetada do determinismo da razão, da análise literal do discurso, é possível produzir os efeitos irracionais ou, se quisermos, impensamentais, únicos dessa experiência, nesse momento específico de leitura. Da infração resulta numa distorção – ou torção – das palavras, das frases e das ideias, de modo a atingir um discurso em potência do dizer e do não dizer. É sobre este princípio que estes textos proveem uma energia invulgarmente renovável: a cada leitura é possível encontrar o texto novo com efeitos diferentes e até mais profundos. Poderá ser esta a língua em estado bruto, não refinada como uma linguagem de inocência que desarma a cultura da lógica, podendo equivaler à exorbitância-da-possibilidade que o pensamento lógico jamais montará e jamais consumirá. É claro que se contabiliza aqui a prática extratextual do leitor tentado transcender-se, misturando as arbitrariedades do pensamento, os seus caprichos e loucuras. Talvez por isso, as inúmeras experiências de leitura em voz alta e performances a partir de textos impensamentais tenham tido resultados pouco satisfatórios, pois esta é a leitura que mais resulta na intimidade do silêncio. É na leitura íntima que o leitor melhor se percepciona a si mesmo pela perturbação mobilizadora da mente que se auto-produz complexifica-se e aprofunda-se, a leitura que desencadeia o Ser nas suas múltiplas identidades, multiplicando-se, dividindo-se, desaparecendo e reaparecendo, num estado de suspensão epoché: o que é agora aqui, talvez fomos, e nunca ser nem o que fui aléns ou, possivelmente, sereis o que ora ides ser acolá. A criação de um texto impensamental constitui-se pelo o controlo estético do caos. Como a língua é totalmente desmontada e refeita noutra singular, a escrita evolui através de uma gramática indeterminada. É enfim, ou uma nova composição que tenta gerar um microcosmos orgânico, de elementos que se atraem ou repelem por motivações e escolhas de vária ordem (fonética, morfológica, semântica...) que só a intuição pode atestar. Não há qualquer tipo de ordem construtiva, portanto produz-se o texto como um território muito próprio da escrita, passível de crescer em várias direções. Contudo, distinto da Poesia Concreta, o Impensamental ainda está limitado à linha de tempo suportada na sequência das palavras, bem como aos caracteres da escrita comum. Num processo claramente interativo entre a escrita e o texto em construção, emerge uma espécie de mapa virtual sobre o qual é possível controlar tantas dimensões da mensagem quanto a criatividade o permitir. O autor vai seguindo um diálogo com o texto de significado aberto, num processo de transformação recíproca. Esse mapa (o qual se pode admitir aqui como contexto), sugere múltiplas camadas ora sobrepostas ora intersectadas. São camadas fragmentadas porque ostentam cortes violentos de sentido, pensamentos bruscos que caem noutros pensamentos vagos, as constatações que vertem em interrogações e as interrogações rarefazem-se no ininteligível. Assume-se a fissibilidade da língua até ao seu elemento atómico, permitindo que as frases, as palavras, as sílabas, as letras, sejam elementos dentro da formação da sintaxe e, ao mesmo tempo, fora dela como manifestação de objetos autónomos ao texto que habitam. Este factor dúplice, potenciado pela corrupção das normas linguísticas já está escorado, de uma forma ou de outra, nas obras de Poesia Visual de Mallarmé (Un Coup de Dês), James Joyce, Ezra Pound, Cummings, Gomringer, do grupo brasileiro Noigandres, e na poesia experimental dos portugueses, como E.M.Melo e Castro, e Ana Hatherly. Contudo, ao invés da Poesia Visual, o impensamental ainda recorre timidamente à componente gráfica dos signos como elemento implicado na mensagem. Face à singularidade do texto, antes de o elaborar numa estrutura gráfica claramente afecta à sintaxe, interessa mais gerar mapeamentos mentais das propriedades que texto evoca, de onde vem muito a propósito a teoria da prototipicidade na linguagem (desenvolvida por Georges Kleiber e Eleanor Rosch), e do pensamento sincrético (Henri Wallon). Como a apreensão da fenomenologia do texto redimensiona-se a cada instante, progredindo à medida que se reconhece e se penetra nos domínios dos seus universos incertos, implica a adaptação da linguagem em coerência com a aquisição de novas ocorrências. Nunca há escolha certa ou errada porque não depende do domínio da dialéctica, do lógico capaz de avaliar a correção ou incorreção do discurso. O que fica como texto acabado é apenas o efeito de uma emergência que o deixa ficar assim... cristalizado no tempo. O processo generativo dos novos mapeamentos mentais, são uma parte importante no conceito impensamental, pois pressupõe uma dinâmica na estruturação da língua muito mais ágil do que aquela costumeira adaptada ao normal progresso cognitivo. Eis pois a divergência face ao surrealismo, pois este segue uma dada relojoaria linguística para instalar uma dada especificidade onírica. Com a língua em aquisição, é possível experienciar outros campos da percepção, intuição e pensamento; é um acontecimento de linguagem, e sendo ela matéria do pensamento ainda por pensar – ou quase-pensado – é a potência do pensamento. Por outro lado, é sabido que a língua estruturada encontra-se sempre neutralizada, reduzida e vinculada a uma zona de presença anónima. Como o impensamental procura a estrutura errática do texto, retira a transparência da língua, bem como o revestimento superficial que toda a semântica gera para a formação do sentido (refira-se aqui também o contacto com a tese deleusiana). Assim, a língua remete-se para si mesma, invoca-se como um objeto que se põe a descoberto na estranheza dos seus mecanismos e entranhas. Contudo esta é apenas uma estratégia estética e não o objetivo último, razão pela qual é necessário ter a prudência em não cair no mesmismo, quer ao longo do texto quer de uns textos para os outros. Isto significa que está implícita a lógica da plasticidade da língua em toda a sua extensão e imprevisibilidade. Será então uma lógica incerta que imprime no texto um estado intermédio: ele não pode estar dentro, nem estar fora da língua. Não pode estar dentro porque tem de a negar e apostar apenas nos acontecimentos mentais criadores, exactamente como eles são, livres, instintivos, indutivos, alógicos e em rede de contactos autopoiéticos; não pode estar fora porque precisa de dizer esse acontecimento supostamente indizível. Tal ambiguidade denota que o texto não se expõe obstinadamente sobre o princípio único da indisciplina e irracionalidade, está doseado com porções de normalidade, como contrapesos que dão momentos de superfície, sentido, harmonia e singularidade. Será, no entanto, sempre um objecto linguístico fortuito. Assim, a condição entre é uma eventualidade-fenómeno oriunda da percepção instantânea, em que o sujeito não pode ser adoptado como um Ser cristalizado num lugar comum, mas irradiado algures na sua multiplicidade, incomensurabilidade e mistério. No entre está em causa a sistemática desconfiança e avaliação do que ocorre conscientemente, e a aceitação livre dos acasos intuitivos. Será este o andar sem meta de Flusser? Será este intuicionismo e a teoria da diferença de Bergson? Será este o plano de imanência de Wittgenstein? 

O impensamental expõe na palavra os terrenos inabitados pelo pensamento costumeiro que, como o diz Agamben, sobre o amor, é o “viver na intimidade de um ser estranho, e não para aproximá-lo, para fazê-lo conhecido, porém para mantê-lo estranho, distante, e mais: inaparente – tão inaparente que seu nome o contenha inteiro.”


Pinhal Novo, Novembro de 2012

espinalMedula

Performance pública em Satarém

 

IMPENSAMENTAL

atelier com batatas

a levar diversas vidas ao mesmo tempo

e trazer suas onomatopeias


A natureza normativa da língua, vocacionada para comunicar o apreensível é agora a substância para o exercício da indisciplina e o ponto de partida para compor a estética impensamental. Encontramo-nos pois, num discurso hiper-subjectivo, lugar onde é necessário ultrapassar as regras da língua e do pensamento e ir para além das excentricidades mais ousadas. Com efeito, a indisciplina e a insolência em todo o seu potencial, são apenas o mecanismo para chegar a uma mensagem-outra que reside algures na fronteira entre o apreensível e o absurdo indizível. O limite está no ponto antes do texto colapsar para uma língua alienígena, para um mero exercício niilista, ou para a veleidade do nonsense. Estabelece-se assim uma faixa de possibilidades onde não se tem de obedecer ao tempo nem ao espaço, ao singular ou plural, ao masculino e ao feminino; onde coexiste o arcaico e o moderno, o erudito e o boçal, a poesia e a verborreia, o drama e a comédia, a matemática e a intuição, o vulgar e o extraordinário...

O impensamental liberta a língua do espartilho de quase todas as leis gramaticais, cuja funcionalidade depende da responsabilidade criativa e da experiência individual de quem escreve e de quem lê. Da infração resulta numa distorção - ou torção - das palavras, das frases e das ideias, de modo a atingir um discurso em potência do dizer e do não dizer. O código situa-se algures no estado anárquico que, para o leitor, corresponde a um estado mental da percepção de si, sem o formato da interpretação racional do texto. Qualquer esforço em compreender um texto impensamental na mesma linha de interpretação de um texto comum, resultam invariavelmente num único sentimento: a frustração de não entender nada. Este não é, obviamente, o objetivo. Mas dada a impossibilidade dum texto não comunicar nada, o modo como se infringem as normas, produzindo um texto permanentemente tensivo e inquietante, será o ponto de partida para a fruição impensamental. Portanto, só com uma leitura descontraída, semi-desafetada do determinismo da razão, da análise literal do discurso, é possível produzir os efeitos irracionais ou, se quisermos, impensamentais, únicos dessa experiência, nesse momento específico de leitura. Poderá ser esta a língua em estado bruto, não refinada como uma linguagem de inocência que desarma a cultura da lógica, podendo equivaler à exorbitância-da-possibilidade que o pensamento lógico jamais montará e jamais consumirá.

A criação de um texto impensamental constitui-se pelo o controlo estético do caos deixando o texto num estado intermédio: ele não pode estar dentro, nem estar fora da língua. Trata-se de uma composição orgânica com elementos que se atraem ou repelem por motivações e escolhas de vária ordem (fonética, morfológica, semântica...) que só a intuição pode atestar.

Nesta sessão os performers elaboram vários textos com porções de conversas impensamentais que se acrescentam num processo de significado aberto e de transformação recíproca. Nunca há escolha certa ou errada porque não depende do domínio da dialéctica, ou do julgamento objetivo capaz de avaliar a correção ou incorreção do discurso. O que fica como texto acabado é apenas o efeito de uma emergência inexplicável que o deixa ficar assim... cristalizado no tempo.

Como o impensamental é a língua em aquisição, situa-se numa área diferente do surrealismo que segue uma dada relojoaria linguística para instalar uma dada especificidade onírica. O impensamental é um acontecimento de linguagem, e sendo ela matéria do pensamento ainda por pensar – ou quase-pensado – é o pensamento em potência. O Impensamental poderá ser, enfim, o que diz Agamben sobre o amor: é o "viver na intimidade de um ser estranho, e não para aproximá-lo, para fazê-lo conhecido, porém para mantê-lo estranho, distante, e mais: inaparente – tão inaparente que seu nome o contenha inteiro.”


Santarém 13 de Junho de 2015

EspinalMedula

Kim Prisu


Dados históricos: Primeira publicação de textos experimentais sob o termo e conceito “impensamental” em Janeiro de 2006: 

http://inteiro.blogspot.pt/ (blogue já bastante adulterado do original); primeiro manifesto impensamental a 28 de março de 2006 pelo grupo artístico “Inteiros”: http://inpucivel.blogspot.pt ; primeira performance pública impensamental em Junho de 2007.

Publicação de textos impensamentais na revista Oficina de Poesia (Fac. Letras da Univ. de Coimbra) ed. nº14 de Março de 2010;

Impensamental em tese

  Ele tirassem com uma alfinete-de-alma todos os quandos do tempo A língua tem consigo incorporada a racionalidade, e com isso está sujeita ...